Este texto começa pelo fim: não, vacinas não causam autismo. Ponto.
Há duas razões fundamentais que sustentam esta afirmação. A primeira é resultado daquele questionamento que devemos sempre fazer em qualquer investigação em saúde: existe alguma coerência nesta alegação? Há alguma lógica nessa história? Biologicamente, existe alguma chance disto acontecer? A esta ideia chamamos plausibilidade biológica. Neste caso, portanto, existe alguma plausibilidade biológica que ligue as vacinas infantis ao desenvolvimento do autismo? Não, já que nenhum componente vacinal tem a propriedade de alterar a qualidade das conexões das células nervosas (neurônios), seja aumentando ou diminuindo a força destas ligações, algo que acontece no transtorno do espectro autista. Mais do que isso, a maioria dessas alterações associadas ao autismo acontece durante a gestação, principalmente no primeiro trimestre, muito antes das crianças receberem qualquer vacina.
Só isso já bastaria para voltarmos nossos esforços para outras direções. Mas aí alguém pode perguntar: mas e se a gente é que não conhece esse mecanismo? Será que não há alguma ligação que a gente desconhece e que pode ser responsável por isso? Bem, décadas de aplicação e monitoramento das mais diversas vacinas e mais de 25 estudos epidemiológicos – incluindo uma extensa e recente pesquisa feita na Dinamarca com mais de 600 mil crianças, publicada em 2019 – são capazes de responder isso: não, não há nenhuma associação entre vacinação e o transtorno do espectro autista, nem na sua causa, nem como deflagrador do TEA em crianças suscetíveis.
Entretanto, apesar de toda essa sólida evidência, profissionais inescrupulosos e indústria das fake news vêm divulgando mentiras e ganhando muito dinheiro com essa falsa associação. Mas como isso começou? O que essas pessoas ganham com isso? E o TEA, afinal, de onde vem?
O início da mentira
Em 1988, Andrew Wakefield e colaboradores publicaram um artigo na revista The Lancet que, após avaliar apenas 12 crianças, sugeria uma potencial conexão entre a vacinação com a vacina tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola), sintomas intestinais e o diagnóstico de autismo que estas crianças receberam logo após o evento da vacinação. Embora o estudo não falasse sobre causalidade, o pesquisador foi à imprensa e publicamente pediu a suspensão da vacinação infantil com a tríplice viral, vacina que salvou milhões de crianças pelo mundo ao longo dos anos.
O que Wakefield não contou à imprensa é que, além de o estudo ter falhas gravíssimas (amostra pequena, ausência de grupo controle, representação incorreta de dados, dentre outros), o pesquisador era financiado por um grupo de advogados que preparava uma ação contra fabricantes de vacinas e que executava exames invasivos nas crianças sem aprovação ética. Um primor de pessoa.
Em 2004, 10 dos 12 colaboradores de Wakefield se retrataram das conclusões do estudo. Em 2010, a revista The Lancet retratou todo o estudo, declarando que era “completamente falso”. No mesmo ano, o órgão que é equivalente ao Conselho Federal de Medicina da Inglaterra considerou Wakefield culpado por má conduta profissional e cassou o seu registro médico. Isso significa que Andrew Wakefield não é mais médico por conta das suas ações inescrupulosas.
Apesar da investigação e da responsabilização de Wakefield, o estrago estava feito: os efeitos das suas mentiras ecoam até hoje, alimentando outros indivíduos antiéticos como ele e explorando a vulnerabilidade e o sofrimento de pacientes e famílias diante do diagnóstico do TEA.
O que ganha quem mente sobre isso?
Dinheiro. Essa é a resposta direta. Mas como?
Retirar as ferramentas de proteção de alguém torna esse indivíduo vulnerável à doença contra a qual ele não se protege ou trata, bem como uma presa fácil para a oferta de métodos “alternativos” para restaurar tal proteção. Assim, parte do dinheiro produzido por essa indústria maléfica vem da venda de métodos ineficazes como substitutivos das vacinas – como suplementos vitamínicos, infusões, exames complementares não validados, dentre outros, habitualmente vendidos nos próprios consultórios médicos ou em parceria com laboratórios e farmácias. Outra parte do dinheiro vem da destruição da confiança dos pacientes com relação ao sistema de saúde e a ocupação deste lugar como única solução admissível para que estes “não caiam nas garras do sistema ou da indústria farmacêutica”.
O que estes profissionais antiéticos não contam é que eles fazem parte de um sistema sórdido que explora e vulnerabiliza pacientes em nome do próprio bolso, tanto pela implosão da confiança do paciente em seu acompanhamento médico corrente, quanto pela associação com atores espúrios da indústria farmacêutica para a venda de soluções falsas para as angústias das pessoas.